terça-feira, 27 de setembro de 2011

USUCAPIÃO POR ABANDONO DO LAR APÓS DOIS ANOS: ART. 1.240-A, ACRESCIDO PELA LEI 12.424/11...

Sala dos Doutrinadores - Artigos Jurídicos
Autoria:

Ricardo Henriques Pereira Amorim


Advogado. Bacharel em Direito pela Faculdade de Direito Vale do Rio Doce (FADIVALE). Especialista em Direito Processual Civil e Direito civil.

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Artigos Jurídicos Direito Civil Usucapião

Primeiras impressões sobre a usucapião especial urbana familiar e suas implicações no Direito de Família

Elabora breves comentários acerca da usucapião especial urbana familiar, prevista no art.1.240-A do CC, e seus reflexos sobre as dissoluções familiares, dando-se especial atenção ao questionamento da culpa pela dissolução do vínculo afetivo.

Texto enviado ao JurisWay em 22/8/2011.

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O mais novo texto do Código Civil, o art.1.240-A, acrescido pela Lei 12.424/11, pode até parecer uma norma de Direito Real, mas a questão vai influir diretamente nas sociedades conjugais brasileiras, quando em crise.

O texto traz a seguinte situação, em apertada síntese: O casal mora em casa própria, de dimensão igual ou menor que 250m2, sendo este o único imóvel do acervo familiar; com a falência fática do relacionamento, um convivente ou cônjuge sai da residência e o outro nela permanece; passados dois anos, aquele que ficou passará a ser o único proprietário do imóvel, excluindo-se o outro; adquire-se o direito a meação do outro por usucapião.

Para melhor discutir os possíveis efeitos da regra, melhor trazê-la, como expressamente prevista:

Art. 1.240-A. Aquele que exercer, por 2 (dois) anos ininterruptamente e sem oposição, posse direta, com exclusividade, sobre imóvel urbano de até 250m² (duzentos e cinquenta metros quadrados) cuja propriedade divida com ex-cônjuge ou ex-companheiro que abandonou o lar, utilizando-o para sua moradia ou de sua família, adquirir-lhe-á o domínio integral, desde que não seja proprietário de outro imóvel urbano ou rural.

§ 1º. O direito previsto no caput não será reconhecido ao mesmo possuidor mais de uma vez.

§ 2º. (VETADO).”

Há muito todos os manuais de direito real já prevêem a possibilidade de usucapião por um dos condôminos em desfavor dos demais, desde que ocorrendo interversão da posse. Tal possibilidade sempre pôde ser utilizado por um dos parceiros (cônjuges ou companheiros) em desfavor do outro, após a separação[1]. Ainda haverá interesse na utilização das regras antigas de usucapião quando se tratar de casal mais abastado, tendo o usucapiente mais de um imóvel (art.1.240, CC) ou sendo a residência maior que 250m2 (parágrafo único do art.1.238 do CC), mas o prazo será, respectivamente de 5 e 10 anos.

Desta forma, o dispositivo não é todo inédito na prática forense. Lado outro a norma inova ao construir uma usucapião urbana cujos requisitos vinculam ao término da vida conjugal do possuidor.

O prazo há de iniciar sua contagem sempre após o abandono do lar por um dos consortes, precedida ou coincidente o fim do relacionamento afetivo. Esta frase não exclui a possibilidade de interrupções do prazo, mas qualquer forma o prazo só correrá após a separação.

É por esta razão que o dispositivo é tão importante para o direito de família, já que seu principal âmbito de discussão será nas ações de partilha de bens vinculadas ao divórcio, dissolução de união estável ou herança. Ou seja, a norma há de ser aplicada, mais comumente, nas Varas das Famílias e Sucessões.

Não é só, a primeira questão que vem a mente do intérprete é sobre qual o sentido do trecho “[…] abandonou o lar […]” para a prática.

Ocorre que o abandono de lar tradicionalmente é indicativo de culpa pela dissolução do vínculo conjugal (art.1.573, IV, CC). Após décadas de críticas duríssimas da doutrina e da sociedade organizada brasileira (principalmente do IBDFAM) entrou em vigor a EC 66/10 com a explícita finalidade de encerrar a questão da culpa dos litígios familiares.

Parte substancial da doutrina acredita na revogação de qualquer dispositivo que se fale em culpa no direito de família, inclusive quanto aos reflexos patrimoniais do divórcio[2].

Questiona-se: agora que a prática forense começa a se acostumar a não excluir direitos de qualquer dos consortes com pauta na culpa, a lei 12.424/11 reviverá o tormento da culpa para indicação de direito patrimonial? Será mesmo que a sociedade está tão petrificada que não pode abrir mão da imputação moral aos fins do relacionamento conjugal? A síntese do problema: o abandono de lar do art.1240-A é aquele mesmo do direito de família (art.1.573, IV, CC)?

Trabalhamos com a hipótese de que não coincide o abandono de lar do direito de família a esta nova idéia do direito real.

A primeira razão já se deixou antever: o direito de família não abriga mais os conceitos de culpa. O art.1.573 foi revogado pela EC 66/2010[3]. O abandono do lar do direito de família não subsiste.

Tese contrária trará de volta a perpetuação do litígio conjugal em torno da culpa pela separação visando interesses meramente patrimoniais. Já que a discussão, talvez longa, acerca da ocorrência de usucapião certamente aconteceria quando o casal contar com imóvel residencial menor ou igual a 250m2 e for possível alegar abandono de lar. Sem contar que as partes temerão cada vez mais sair de casa após o fim do relacionamento afetivo, preferindo dividir o imóvel mesmo que contra a própria liberdade e intimidade.

Há ainda outras razões. Veja que a Lei 12.424/11 tem precípua instrução de justiça social, já que teve por finalidade maior o regramento do Programa Minha Casa Minha Vida, direcionado ao direito social de moradia em sua vertente prestacional (art.6º, CF) e não a singela inclusão do art.1.240-A ao CC.

Ademais, os requisitos da norma direcionam para utilização maior pela parcela mais pobre da sociedade brasileira (que é também a maioria), já que o imóvel deverá ser o único do usucapiente e não ser maior que 250m2. Observe que o imóvel objeto da norma é aquele bem de família legal, dos mais modestos.

Colimando a pretensão social ao expurgo da culpa do direito de família e a mens legis voltada à Justiça Social, temos que o abandono de lar deve ser analisado sobre a vertente da função social da posse e não quanto a moralidade da culpa pela dissolução do vínculo conjugal.

Ou seja não é de se analisar se o abandono de fato caracterizou culpa, ou se a evadir-se foi legítimo ou até mesmo urgente. Buscará apenas qual dos dois permaneceu dando destinação residencial ao imóvel e pronto, independente da legitimidade da posse e do abandono.

Importante, neste ponto ressaltar que o legislador não exige demonstração de boa-fé ou posse justa.

Um exemplo, discutível por questões éticas, é da mulher que, sendo agredida, abandona o lar para cessar a violência. Ela deixa escoar dois anos sem questionar (judicial ou extrajudicialmente) a propriedade ou a posse do agressor sobre o imóvel. Não há nada de culposo no ato da mulher, mas uma vez que o agressor estaria dando ao imóvel sua destinação social, a ele caberia a propriedade integral, excluindo o condomínio da violentada.

Outro caso, hipotético mas também corriqueiro, do homem que deixa o lar conjugal após o fim do amor, não por desrespeito ao casamento ou a união estável, mas para tentar salvar a dignidade, liberdade e intimidade dos pares. Ou seja, a evasão é honrosa e se faz por respeito a si e ao outro, já que ambos não desejam mais serem íntimos não há porque dividir um mesmo ambiente e uma mesma vida. Também pode não parecer justa a solução, mas se passados dois anos de posse sem questionamento por parte daquele que voluntariou-se a despedir-se do lar, haverá perda de propriedade.

Adotar tese diversa, embora o resultado mais “justo”, necessariamente fará ressurgir a questão culpa no direito de família e a imputação moral pela separação, inclusive com efeito patrimonial. Como a tradição já fez provar, a culpa alonga os litígios e os torna mais complexos, roubando-se a paz dos litigantes ao invés de restabelecê-la.

Não obstante, a forma como a lei trouxe o termo “abandonou o lar” é perigosa e traz a possibilidade de formar opinião que a culpa no divórcio e dissolução de união estável ressuscitou. A partir daí, uma luta jurídica de décadas que parecia ganha pela EC 66/10 pode ressurgir.

Dessa forma, é forçoso concluir que o abandono de lar para fins de usucapião é desligado da culpa pelo rompimento da vida a dois. “[…] abandonou o lar […]” é o mesmo que abandonou ao condômino a utilização do bem segundo seu fim social: moradia; ou, mais simples, deixou de ali morar. A questão é toda ela ligada à função social da posse.

Há de se criticar também o prazo exíguo de dois anos para a formação da usucapião. Até pouquíssimo tempo atrás era este mesmo tempo o necessário para a realização do divórcio. Embora a lei não exija mais tal lapso de separação fática, ele continua sendo, na prática, mais ou menos respeitado pelos casais, por constituir um prazo de reflexão bastante razoável.

O prazo tão curto acaba por apressar os casais a formalizarem sua separação, forçando a redução do prazo de reflexão e reestruturação de sentimentos e projetos familiares. Tal circunstância atenta contra a dignidade e liberdade dos envolvidos que poderiam, quiçá deveriam, deixar fluir mais tempo antes de decidirem-se por enveredar por procedimento de partilha de bens.

Quanto a questão da justiça social, a norma efetivamente cria uma garantia para quem consolidou residência no imóvel do casal, já que dali não virá a ser despejado com a partilha do patrimônio ao meio. Ou seja, apenas um dos consortes voltará à busca da concretização do sonho da casa próprio, o outro não.

Perverso, no entanto, é o outro lado da moeda. Quem já contava com muito pouco (meação sobre um único imóvel menor que 250m2), doravante não terá nada. Poucos anos depois da separação, constatará estar em situação patrimonial bastante desprivilegiada ao outro, vendo a união de vidas como um prejuízo sem medidas. Não é só, perceberá traído o regime de bens, esvaziada a garantia de partilha de bens ao final do relacionamento.

Será mesmo que essa solução atende ao ditame da Justiça Social! Principalmente porquanto acabará por cumular renda na mão de um, ao invés de partilhá-la entre dois. Rememora-se que a Justiça Social tem por finalidade precípua a concretização da igualdade material, jamais a cumulação de bens.

Será mesmo que aquele que não está exercendo a posse por questões eminentemente familiares (fim do relacionamento conjugal) deixou sua posse abandonada de função social! A norma presume que sim, mas é questionável se o legislador merece aplausos.

De toda feita, difícil de forma abstrata alegar a inconstitucionalidade da norma por ferir o direito social à Justiça Social, já que não é mesmo possível ao intérprete prever o efeito cósmico da norma de forma segura, embora possa ser feito caso a caso[4]. Casuisticamente também caberá análise se a aplicação da norma fere o princípio da igualdade (art.5º, I, e art.226, § 5º, CF), já que destinará mais bens a um do que a outro consorte.

Melhor será argüir vício de constitucionalidade formal, já que a Lei é proveniente de Medida Provisória sem sequer indício de urgência ou relevância.

Quanto à defesa de fato contra a pretensão da usucapião se resumirá a argüição de flâmulo da posse (mera concessão), o que será de difícil constatação tendo em vista a natureza de proprietário do usucapiente. Também poderá levantar questionamento sobre a mansidão da posse, mas o prazo exíguo de apenas dois anos certamente é favorável ao usucapiente.

No mais, esperamos que os juízes tenham extremo cuidado no julgamento das ações de separação de corpos, porque agora poderão ter efeito patrimonial grave sobre o réu condenado.

Em conclusão, cabe-nos aguardar opiniões mais abalizadas da doutrina, jurisconsultos e dos pronunciamentos jurisprudenciais, para então se formar um juízo de valor certeiro sobre a norma. No entanto, a partir de uma opinião afoita devemos discordar do legislador uma vez que ao usar o termo “abandonou o lar” perigosamente remete-nos à culpa do direito de família podendo formar opinião da ressurreição desta falha que levou anos para ser enfim extirpada de nosso direito; também porque ao invés de consolidar a Justiça Social, acaba por concentrar a renda na mão de um dos condôminos, gerando desigualdade patrimonial entre os consortes; a norma ainda poderá abalar a segurança jurídica depositada no pacto antenupcial e apressar os consortes à partilha de bens, encurtado o prazo de reflexão necessário entre a separação fática e a judicial.

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