As faces de um Pará desinformado
A poucos dias do plebiscito que pode dar início à criação de Carajás e Tapajós, a população de cidades do interior está completamente alheia à discussão sobre a divisão do estado
Bruno Abbud, do Pará
Com 13.000 habitantes, o município de Senador José Porfírio foi a primeira aberração que surgiu com a ideia da divisão do estado. No projeto inicial, metade da cidade ficou em território tapajoense e outra metade em área paraense.
Em 11 de dezembro, um domingo, grande parte dos moradores de Altamira, Senador José Porfírio e Anapu, no Pará, acordarão em casas abafadas de palafitas, sem rede de esgoto nem água encanada, e percorrerão ruas de terra batida até alguma escola municipal de muros mal acabados. Diante da urna eletrônica, opinarão sobre a proposta de divisão do estado em três unidades federativas. A reportagem do site de VEJA visitou a região e constatou que, a poucos dias da votação, a população permanece completamente desinformada. Alguns sequer imaginam que terão de fazer uma escolha em poucos dias. Essa é a realidade dos municípios que ficarão na tríplice fronteira entre Carajás, Tapajós e o chamado Pará remanescente caso vença o “sim” no plebiscito marcado para a próxima semana.
Os que sabem que a votação se aproxima são movidos por um único motor, quer defendam o sim, quer defendam o não: a ausência do poder público. Quando aparecerem nas urnas as perguntas “Você é a favor da divisão do Estado do Pará para a criação do Estado do Tapajós?” e “Você é a favor da divisão do Estado do Pará para a criação do Estado do Carajás?”, parte dos 4,8 milhões de eleitores paraenses votará “sim”, porque acredita que isso os tirará da miséria. Parte dos que votam “não” argumenta que a divisão é mais uma ideia dos políticos interessados em algo mais rentável que o bem-estar da população.
O fato é que a divisão do Pará acarretará grandes impactos, que vão desde a repartição dos recursos federais até a alteração de identidades culturais, passando pela necessidade de construção de novas assembleias, tribunais, palácios, quarteis, pela criação de cargos eletivos e comissionados e pela possiblidade de se aumentar a carga tributária a nível nacional. Pelo andar da carruagem, no entanto, tudo indica que a escolha dos paraenses não será baseada em argumentos racionais, mas emocionais.
“Voto para não dividir o meu Pará”, afirma Francisca de Souza Silva, uma dona-de-casa de 48 anos, cabelos longos e encaracolados, com as unhas dos pés pintadas de roxo, encostada em um dos dois sofás que compõem o mobiliário da palafita encravada no bairro da Boa Esperança, na periferia de Altamira, a 830 quilômetros de Belém. Por quê? Francisca não sabe. Seu voto é amparado em argumentos que chegaram até ela pela televisão. “Não sei quando vai ser o plebiscito nem o número que tenho que apertar na urna”, diz. Quase todos os dias, ela ouve o apresentador Odair Oliveira, da TV Altamira, comentar a divisão do estado. “Ele não explica nada, só fala que vai ter uma votação. A campanha ainda não chegou aqui”.
Francisca é o retrato perfeito do morador de Altamira, o município mais extenso do mundo, com área equivalente a três estados do Rio de Janeiro e 105.000 habitantes que ficarão no lado de Tapajós com a divisão do estado. O marido trabalha em um garimpo ilegal de ouro às margens do Rio Xingu. O filho mais velho integra a equipe de operários da usina de Belo Monte, terceira maior hidrelétrica do mundo, e, para chegar ao trabalho, percorre 40 quilômetros de terra pela rodovia Transamazônica. Quando chove, as águas dos poços artesianos que matam a sede da vizinhança e os dejetos aglomerados em fossas se transformam em um só lago, onde as crianças insistem em nadar. Não há saneamento, segurança nem educação.
“As pessoas estão saturadas de políticos por aqui”, conta Elys Araújo, 35, pedreiro. “Nunca cumprem as promessas, nunca acontece nada”. Ele acha que, talvez por isso, as discussões sobre o plebiscito não façam parte das conversas dos moradores.
“Aqui todo mundo é leigo”, afirma Francisco das Chagas da Silva, 41, vigilante de uma obra no bairro de São Domingos. “Ninguém sabe em que votar. Ninguém sabe o que pode acontecer de bom ou ruim”. O depoimento de Francisco poderia ter saído da boca de qualquer altamirense. A poucos dias do pleito, as campanhas do “sim” e do “não” continuam concentradas na capital Belém. “Aqui não chega informação”, avisa José Lucas Uchôa, 52, piloto de voadeira no Rio Xingu. Os deputados federais, Zenaldo Coutinho (PSDB), e estadual, João Salame (PPS), presidentes das frentes pró e contra Carajás, respectivamente, informaram que a campanha estava prevista para começar naquela região no início de dezembro.
Xingu ─ Enquanto a campanha não chega, os moradores do interior (35% do eleitorado paraense) permanecem reféns das ondas do rádio e das emissoras de televisão. Na beira do Xingu, por exemplo, as populações ribeirinhas recebem notícias sobre o plebiscito por meio de rádios comunitárias ─ que se limitam a anunciar a data e o local da votação ─ e pela TV Liberal, cujo dono, Rômulo Maiorana Júnior, é contra a divisão.
O resultado: quem tem 400 reais para instalar uma antena parabólica e assiste ao canal de Maiorana vota “não”. “Estava em dúvida sobre o voto, mas aí começaram a falar sobre o ‘não’ na televisão e decidi ir contra a divisão”, afirma Crisleine Pacheco do Nascimento, 25, que trabalha em uma mercearia no município de Senador José Porfírio. Além da TV, Crisleine é influenciada pela avó, Fabiana Pacheco do Nascimento, 82, que também assiste à programação. “Ninguém está vendo que quanto mais estados, mais comedores de dinheiro?”, argumenta Fabiana. “Se os paraenses aceitarem essa armação, o Pará vai ficar sem nada”.
Tapajós ─ Com 13.000 habitantes, o município de Senador José Porfírio, mais conhecido como Souzel, foi a primeira aberração que surgiu com a ideia da divisão do estado. A cidade é uma das poucas que tem sua área descontínua, dividida em duas partes pela cidade de Anapu. Em 1991, quando um grupo de parlamentares liderados pelo deputado federal Hilário Coimbra, do PTB do Pará, desenhou o mapa do estado de Tapajós, as peculiaridades de Souzel foram ignoradas. Metade da cidade ficou em território tapajoense e outra metade em área paraense. “O impasse se estendeu até o começo deste ano”, conta Cléo José Alves da Silva, secretário de Administração, Planejamento e Finanças de Souzel. Em março, o deputado Lira Maia (DEM-PA) apresentou uma proposta para integrar a área remanescente ao território de Tapajós e a questão foi solucionada – ao menos para a prefeitura.
O povo de Souzel ainda não sabe com certeza o próprio endereço, na hipótese de o estado ser dividido. Leure Câmara, 28, que trabalha operando uma máquina de xerox em uma das três avenidas que formam o centro da cidade, afirma com todas as letras: “Aqui vai ser Carajás”. Carlos André Alves de Oliveira, 29, que conserta motocicletas em Souzel, engrossa o coro dos desinformados. “Eu tinha na minha mente que Souzel ia ficar no lado do Pará. Esses dias, descobri que ia ficar no lado do Tapajós. Se me perguntarem hoje, eu não sei onde vai ficar a minha cidade”. Na dúvida, Oliveira prefere optar pelo “não”. Os decretos legislativos 136 (que propõe Carajás) e 137 (que propõe Tapajós), ambos aprovados este ano, são bem claros: se o plano der certo, Souzel fará parte do estado de Tapajós.
Carajás ─ Em Anapu, município que divide Souzel, a realidade é diferente. Graças a um comitê da campanha do “sim” instalado na principal avenida da cidade e do trabalho de divulgação de lideranças municipais, a maior parte da população sabe que está no lado que pode se transformar em Carajás e vota pela criação do estado ─ embora também não saiba explicar por que.
Em 23 de novembro, quando o radialista José Nilton da Silva, 41, usou o microfone para convocar a população de 20.000 habitantes a ligar para a rádio e dizer qual posição tomariam no dia do plebiscito, o telefone não parou de tocar. Nas primeiras cinco ligações, os cidadãos anunciaram que votariam no “sim”. Por quê? “Do jeito que está, não dá”, resumiram. “A população reclama de tudo, principalmente da saúde e da educação”, conta Nilton. “Temos só dois médicos. O salário é de 22.000 reais e mesmo assim eles não ficam aqui. Falta água e luz quase todos os dias. Carajás tem minérios, Tapajós tem cacau e Belém, que não produz nada, é que fica rica”.
Foi em Anapu que, em fevereiro de 2005, a missionária americana Dorothy Stang foi assassinada a tiros por pistoleiros. O crime ganhou as páginas de jornais do mundo inteiro. De lá para cá, a violência diminuiu. Dos dez presos que ocupam a cadeia da cidade, cinco foram condenados por abuso sexual, três por roubo e dois por tentativa de homicídio.
A precariedade dos serviços públicos, contudo, continua idêntica. Foi agravada em 13 de novembro, quando um tufão atingiu o município, arrancando árvores, derrubando postes e destelhando casas ─ 1.229 pessoas foram afetadas e houve um prejuízo de 270 000 reais só com a infraestrutura pública. Em novembro, Anapu recebeu 397 975 reais do Fundo de Participação dos Municípios, repasse federal determinado pela Constituição. Só a folha de pagamento dos servidores consumiu 159 302 reais.
De acordo com Sandra Xavier, 38, chefe de gabinete da prefeitura e braço-direito do prefeito Francisco de Assis Souza, o Chiquinho do PT, a divisão do Pará resolveria a escassez de recursos. “A região metropolitana consome muito dos recursos estaduais e federais”, diz. “Queremos Carajás simplesmente porque precisamos de desenvolvimento e cansamos de ser esquecidos”. Indignada com a falta de dinheiro, Sandra não se deu conta que a criação de Carajás e Tapajós exigirá a construção de novas assembleias legislativas, palácios, quarteis e tribunais, além da criação de milhares de cargos comissionados ─ infraestrutura que custará caro aos cofres públicos.
A poucos quilômetros dali, em uma palafita que repousa isolada nas margens do Rio Xingu, o seringueiro Iolando Morais Pimentel, 48, que costuma cumprimentar jacarés de cinco metros de comprimento que aparecem na porta da casa todo fim de tarde, sabe do risco que corre. “Eu voto no ‘não’ para a quantidade de políticos corruptos não aumentar”, diz. Ângela Maria, 34, moradora do bairro de palafitas em Altamira, continua em dúvida. Questionada pela reportagem em como votará, ela retrucou com outra pergunta: “Mas por que querem separar? É porque a verba vai ser grande?” Antes de pensar em dividir, o Brasil deveria pensar em informar.
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