Mauro Adorno
A rua Ariovaldo Silveira Franco não tinha asfalto e era escura. Em seus lados, aqueles cupins altos e moitas de barba de bode. As belas casas do Jardim Brasília nem pensar. Distantes, apenas umas casas populares lá no fundo, já no Mirante, perto da avenida Jacareí, na rua Interactiano Antonio Albejante Filho, o Tonante, filho do doutor Toninho Albejante, um jovem alegre, cuja vida foi ceifada por um acidente automobilístico em uma péssima estrada nordestina. Nós estávamos ali na sede do Tiro de Guerra, ano de 1969, para cumprir praticamente um ano de serviço militar, na realidade para aprender, além de manuseio de armas e amor à pátria, as boas formas de convívio em família e com amigos.
Naquela noite escura, um indivíduo começa a subir a avenida, em frente à escola “Pedro Ferreira Alves”. Assobiava tranquilamente. Na frente da sede, armado com um fuzil Mouse 1908, um atirador cumpria um período de duas horas como sentinela. De longe avistou o vulto – um homem coberto com um cobertor para amenizar o frio violento daquele inverno. “Alto lá”, gritou, com o intuito de parar o indivíduo e identificá-lo, uma prática normal em caso de pessoas suspeitas. E nada do indivíduo parar. Ele continuava com seu assobio. O companheiro alertou com mais um “alto lá”, com a voz mais forte e nada. Pensou que a sede poderia ser vítima de um assalto. Chamado, o cabo da guarda, João Batista Moreira, não teve dúvida, abriu fogo.
O sargento Eudes Vieira era o comandante do Tiro de Guerra. Foi responsável pela formação de milhares de jovens nessa terra que adotou como sua. Na sociedade mogimiriana que viveu naqueles idos de 60 e 70, não há quem não tenha desfrutado de seu convívio, direta ou indiretamente. Para manter sua enorme prole, nas horas de folga se dedicava ao comércio de ferro velho, com sua velha perua Kombi. Nela, transportava pequenas quantidades de materiais, mas tinha volume de compras e lucratividade mesmo era com as sucatas descartadas pelas indústrias, especialmente o aço dos tempos áureos em que Mogi Mirim era conhecida como “a capital dos móveis de aço”. Eudes foi transferido para a Bahia, depois Rio de Janeiro, e posteriormente montou escritório de advocacia em Campinas, onde morou até seus últimos dias.
A época era de plena ditadura militar. Eudes não defendia fervorosamente o golpe de 1964. Dizia apenas que os militares que matavam nos porões da ditadura apenas cumpriam ordens. Contava sempre que o capitão Carlos Lamarca havia vindo para Mogi Mirim por diversos anos para fazer o exame final dos atiradores. Lamarca se tornou insurgente ao regime, desertou, e começou a lutar como rebelde. Roubou um caminhão de armas do Quartel de Quitaúna para armar os guerrilheiros. E, poderia vir a Mogi assaltar o TG, dizia ele. Era conversa fiada dele para nos amedrontar e nos deixar alertas nas guardas noturnas. Como poderíamos enfrentar um guerrilheiro - Lamarca - com os velhos fuzis 1908?
O zumbido passou longe do corpo do indivíduo que subia a Ariovaldo Silveira Franco, mas parecia que o raspara. Ele tirou o cobertor das costas e gritou: “Para, sou eu, vocês estão loucos? É o João Lino”. O irmão da magnífica cantora Regina Lino e filho do saudoso e benquisto Mário Lino. Trêmulo, com as pernas bambas, como conta o atirador Paulo Jesus Vital do Prado, o Paulinho do Cartório. Pretendeu, com o cobertor, assustar os companheiros. É lógico que esse episódio não chegou ao conhecimento do sargento Eudes. No dia seguinte roubaram uma bala na sala de armas, e completaram o pente do fuzil. Até nossos dias quando João – Carlos – Lino conta essa história ele tem um friozinho na barriga. Não é por menos.
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